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Sertão enquanto seu lugar no mundo

Hoje, no município de Cajazeiras, Lua Lacerda apresenta a sua primeira antologia poética: ‘Redemunho’

por publicado: 19/01/2023 12h53 última modificação: 19/01/2023 12h53
Exibir carrossel de imagens Foto: Caique Vitoriano/Divulgação Obra de Lua Lacerda trata da trajetória histórico-social que há entre o Sertão e o litoral paraibano, refletindo sobre como o fluxo migratório altera as subjetividades e as percepção de lugar no mundo

Obra de Lua Lacerda trata da trajetória histórico-social que há entre o Sertão e o litoral paraibano, refletindo sobre como o fluxo migratório altera as subjetividades e as percepção de lugar no mundo

por Audaci Junior*

 

Não se engane, pois a capa da antologia poética Redemunho (Editora UFPB) é roxa por um motivo: é a cor do feminismo. Intrínseco não apenas pelas experiências da autora, a paraibana Lua Lacerda, a obra aborda a posição da mulher dentro da sociedade, além da histórica transição entre o Sertão e a capital como a sua “coluna vertebral” poética. “A questão da mulher aparece de maneira forte no livro”.

Redemunho foi escrito entre 2018 e os três primeiros meses de 2019. “2018 foi ano em que passei o primeiro semestre no Sertão e o segundo na capital, ou seja, o livro foi escrito envolvido por essa mudança”, destacou a escritora. “Os poemas que compõe a obra desenham esse deslocamento Sertão-capital, entendendo que não se trata de uma mudança individual, mas de um fenômeno histórico, que é a evasão dos povos do Sertão”, frisou a poeta.

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Obra de Lua Lacerda trata da trajetória histórico-social que há entre o Sertão e o litoral paraibano, refletindo sobre como o fluxo migratório altera as subjetividades e as percepção de lugar no mundo

Como uma volta às suas raízes, a coletânea será apresentada hoje, na cidade natal de Lua Lacerda, onde ela viu a luz pela primeira vez, no município de Cajazeiras. O evento gratuito começará às 19h30, no Núcleo de Extensão Cultural da Universidade Federal de Campina Grande (NEC-UFCG).

“O nome Redemunho se justifica porque é algo bastante comum no Sertão e o livro trabalha muitos elementos da realidade sertaneja como metáforas”, justificou a autora. “Além disso, os redemoinhos servem para trazer ao alcance da vista o que antes estava invisível no chão. Escolhi ‘redemunho’ ao invés de ‘redemoinho’, pois a ideia é aproximar da linguagem oral, de como falamos aqui, no Sertão”.

O livro foi selecionado no edital de obras poéticas da Editora da UFPB, em 2019, cuja comissão de seleção foi composta pelos escritores Sérgio de Castro Pinto, Moama Marques e Gilmar Leite Ferreira.

“Algumas pessoas me dizem que o livro tem muita crítica social, mas eu não acho que é isso. Ele faz um movimento de pensar o Sertão enquanto seu lugar no mundo e as condições objetivas e subjetivas de poder tornar-se poesia, e eu de me tornar poeta. Naturalmente, esse é um caminho que passa por conflitos sociais, onde não é possível não falar sobre desigualdade”, apontou Lua. “No que tange às condições subjetivas, por exemplo, em uma sociedade que educa as meninas das nossas comunidades ao silêncio, criar condições subjetivas é, nadando contra a corrente, erguer a voz, se apropriar do seu trabalho, se entender como agente de mudança e transformação. Ou seja, fazer um caminho contrário a algo que está bem organizado pelo patriarcado, que é minar a autoestima intelectual de mulheres”.

Quando se fala em criar condições objetivas, a discussão é de acessos às políticas, nas palavras da autora. “No Sertão, nossa evasão é praticamente forçosa diante das políticas de sucateamento a recursos básicos e entre eles está a cultura. Estou ciente que se eu não tivesse feito esse deslocamento Sertão- capital, tampouco teria publicado o Redemunho”, esclarece Lua Lacerda.

‘Mulherio das Letras’
Uma das mais importantes iniciativas pelo Brasil é o ‘Mulherio das Letras’, coletivo feminista literário que promove um movimento político de mulheres que atuam através da arte da palavra, trazendo notoriedade e divulgação para as autoras e suas obras pelo país.

Além de João Pessoa, um dos principais braços da iniciativa nacional no estado é Cajazeiras, cujo primeiro encontro – o Mulherio das Letras do Sertão paraibano – se deu em abril do ano passado, organizado por Lua Lacerda com as escritoras Mirian Oliveira, Veruza Guedes e Thainara Silva.

“O evento foi fundamental para reunir as vozes femininas da literatura do Sertão e resultou em uma antologia chamada Ritos e versos para o fim do mundo. Essa coletânea é maravilhosa para quem deseja conhecer o que está sendo produzido de literatura no Sertão da Paraíba”, disse Lua. Lançada pela Editora Arribaçã, a obra reúne poemas, contos e crônicas de escritoras nascidas ou residentes na região sertaneja.

A escritora, poeta e jornalista cajazeirense já tem um novo projeto para ganhar à luz: “Eu estou concluindo um novo livro, chamado Difícil Navegar, cujos rios da Paraíba são as metáforas centrais”, explicou ela. “A ideia é fazer sempre um movimento de compor poemas atuais, mas que entendem e conhecem sua infância. No caso da Paraíba, nossa infância indígena”, concluiu Lua Lacerda.

Poesia - Confira alguns poemas presentes na coletânea:


O que é poesia?

uma moça de cabelos escuros
lendo romeu e julieta no pau de arara
com uma sacola cheia de romãs pendurada
e lábios rachados de sangue
se perguntando incisivamente
o que é poesia

a lavadeira à beira do açude
cantando elvis presley
suas mãos feridas dos zíperes das calças
fica imaginando o que diz
a canção

os agricultores na roça
escutando nina simone
no radiozinho a pilhas
com grandes chapéus de palha
cobrindo seus rostos do sol
discutem entre si
a estrutura de um poema

uma filha ensinando
letras e sílabas
à sua mãe analfabeta
no ensejo de lhe mostrar
versos que a escreveu

as freiras reunidas na capela
lendo em voz alta
os contos da valéria rezende
suspeitam gravemente
do que se trata

uma faxineira surda
em um dia de sábado
vê o reflexo do seu rosto
na xícara de vidro
e tem a certeza

Onde o sol nasce primeiro

a cidade fez a natureza
de onde eu vim
a natureza fez a cidade
enjaularam o pôr-do-sol para vender
e os rostos se espremem nas grades
para ver o sol morrendo
fazem fotografias enquadradas
da ruína do astro
eles dizem
vai nascer de novo
mas nunca nasce
eles dizem
desse lado vai nascer primeiro
mas nunca nasce
o mar é minúsculo e o açude
grande
carrego o açude no peito
hoje mesmo choveu por aqui
e ele sangrou

Tia lucinha

já faz tempo daquele tempo
que tu servias pessoas à mesa
e limpava os sapatos sujos
de outros pés
já faz um tempo desde
aquele em que você
carregava latas d’água na cabeça
para matar a sede
dos outros
mesmo que os outros
não fossem lá tão diferentes
assim de você
mas por causa dos quadros estranhos
pendurados nas paredes
você sempre achou que eles
eram melhores
e já faz um bom tempo desde a última vez
em que você queimou o arroz
e foi escarnecida
pelas pessoas com óculos de sol
e grandes carros na garagem
você costumava sentar na calçada
em uma cadeira de balanço azul
e ficava até o sol morrer
então você morreu
agora eu quem estou sentada na calçada
em uma cadeira de balanço verde
mas eu não estou esperando o sol
para morrer
eu espero mesmo
que ele renasça


*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 19 de janeiro de 2023.



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