Notícias
‘Ceguinhas’ atiradas ao ostracismo
Vinte anos depois de encontrar o sucesso, e de perder uma irmã, Indaiá e Poroca queixam-se que foram esquecidas

Estrelas do filme ‘A pessoa é para o que nasce’, Poroca e Indaiá perderam, em 2017, a irmã Maroca, com quem formavam o trio As Ceguinhas de Campina Grande
por Guilherme Cabral*
Saudade – e muita – é o sentimento que invade a mente de duas cantoras populares, Francisca da Conceição Barbosa, cujo nome artístico é Indaiá, e Regina Barbosa, a Poroca, quando lembram dos momentos de fama que puderam compartilhar no início dos anos 2000, ao lado da outra irmã, Maria das Neves, a Maroca, que morreu em março de 2017, aos 72 anos de idade, em decorrência de complicações causadas por um acidente vascular cerebral (AVC).
Elas formavam o trio conhecido como “As Ceguinhas de Campina Grande”, em virtude da deficiência visual de nascença de todas, e, a partir do início da década passada, quando a dura história das três, para garantir a sobrevivência, foi contada em filmes, passaram a realizar muitos shows, conceder entrevistas e ganhar prêmios.
Atualmente, a situação é bem diferente da de outrora, porque ambas consideram que foram “esquecidas”, por não estarem em atividade, embora queiram continuar se apresentando. “Lamento demais, pois ninguém nos convida para nenhum canto”, confessou Indaiá para o Jornal A União.
- Estrelas do filme ‘A pessoa é para o que nasce’, Poroca e Indaiá perderam, em 2017, a irmã Maroca, com quem formavam o trio As Ceguinhas de Campina Grande
“Eu tenho sonhado muito fazendo shows, mas quando acordo, lamento demais, porque eu pensava que era verdade”, disse Francisca Conceição, a Indaiá, que tem 71 anos de idade.
Ela está vivendo com a irmã, Regina Barbosa, a Poroca, de 79 anos, em uma casa localizada no bairro Catolé, na Zona Norte da cidade de Campina Grande, sob a tutela e os cuidados dos proprietários do imóvel, o atendente de telemarketing Lenildo Tavares e sua esposa, Walquíria Calisto, e os três filhos do casal, com idades entre 13 e 24 anos.
As duas irmãs moram na casa de Lenildo e Walquíria há oito anos. “Antes de virem para cá, elas residiam com familiares, mas, por causa de problemas de relacionamento, pois não eram cuidadas direito, manifestaram interesse de morar aqui, pois minha esposa já era conhecida delas, porque já trabalhava como cuidadora das irmãs, função que permanece exercendo atualmente. Nós a aceitamos como se fosse um teste, mas terminaram ficando e estão conosco até hoje”, explicou Lenildo.
- Estrelas do filme ‘A pessoa é para o que nasce’, Poroca e Indaiá perderam, em 2017, a irmã Maroca, com quem formavam o trio As Ceguinhas de Campina Grande
Após o almoço, Indaiá e Poroca voltam para o terraço para novas conversas e resgate de mais momentos guardados na memória, até vir o jantar e, posteriormente, o recolhimento para dormir, por volta das 22h. “Os convites para apresentações pararam antes da chegada da pandemia da Covid – 19, contra a qual já foram vacinadas, o que afetou ainda mais a possibilidade de poderem se apresentar. Acredito que voltar a realizar shows seria importante para as duas, pois ajudaria a espairecerem. Por isso, deixo o rádio ligado o dia todo para ouvirem músicas”, disse Lenildo, acrescentando que as duas irmãs só saem de casa em caso de “extrema necessidade”, para evitar que contraiam algum tipo de doença.
Encontro com Juliette e a morte de Maroca
Lenildo Tavares contou que uma dessas saídas foi durante a edição do Maior São João do Mundo, realizada neste ano. “Por ouvirem no rádio e outros meios de comunicação, as duas gostam muito e cantam músicas da paraibana Juliette, que veio realizar o show de encerramento do evento em Campina Graande. Meu filho, Leonardo, teve a iniciativa de enviar pedido à produção da cantora para se encontrar com ela, no Parque do Povo.
Convite aceito, elas se encontraram no camarim da Juliette, onde passaram a tarde e até gravaram vídeo registrando o momento”, afirmou ele. “Fiquei muito feliz de ter feito gravação com Juliette e ter assistido ao show. O jeito dela, como pessoa, é legal”, comentou Indaiá.
Sem a líder
A morte de Maroca, que era considerada a líder do grupo, afetou, como se era de esperar, a carreira do trio, pois era ela quem dava a marcação das canções e toadas. “Ficou prejudicada, pois não tem a animação que tinha com ela. Sentimos muita falta e saudade dela”, admitiu Indaiá, que precisou guardar, ao lado de Poroca, um longo período de luto, em virtude da união que sempre mantiveram, até a retomada das apresentações em eventos em locais diversos, como escolas.
Maroca realizou sua última apresentação em agosto de 2016, quando o trio foi homenageado no Museu dos Três Pandeiros, em Campina Grande.
Apesar de lamentar o esquecimento pelo qual passam, Indaiá confessou que dois momentos são marcantes na carreira do trio. “O primeiro foi ter saído das ruas, porque vivíamos pedindo esmolas, no Centro de Campina Grande, com bacia na mão. O segundo foi o filme ‘A pessoa é para o que nasce’, de Roberto Berliner, porque ficamos mais famosas e mais conhecidas”, disse ela.
Lenildo acrescentou que as três irmãs eram levadas pela mãe para a região, onde ficavam cantando emboladas, cantigas e cocos e tocando para conseguir a ajuda das pessoas. “Isso atraiu a atenção do cineasta Berliner, que gravou cenas delas e depois se identificou”, disse ele. “Berliner ficou sensibilizado com a nossa situação, que era muito humilhante e sofrida”, confirmou Indaiá.
Lenildo lembrou que, em 1997, o cineasta carioca levou as três irmãs para uma apresentação no programa “Som da Rua”, da TVE. A partir da captação dessas imagens, ele montou o documentário de curta-metragem ‘A pessoa é para o que nasce’, lançado no ano seguinte. O título é considerado uma licença poética de uma fala de Maroca, que, em determinado momento da entrevista, afirma que cada pessoa tem a sua sina.
E, em 2004, o diretor transformou o curta em longa-metragem, que registra momentos do dia a dia do trio, abordando, com fundo musical, as histórias de cada uma e mostrando como era o convívio familiar de Maroca, Poroca e Indaiá.
Naquele mesmo ano, o trio recebeu a Ordem do Mérito Cultural, concedida pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e que é conferida a personalidades nacionais e estrangeiras, como reconhecimento pela contribuição à cultura do Brasil. Em 2015, a então presidente da República, Dilma Rousseff, repetiu o gesto.
Na época, o lançamento do filme do diretor Roberto Berliner também foi acompanhado pelo CD duplo homônimo ao do documentário, que traz alguns diálogos reproduzidos na produção e canções, como os cocos “Atirei no mar” e “Siga e venha, siga e vá”.
Em decorrência dessa obra audiovisual, premiada no País e no exterior, além do recebimento da Ordem do Mérito Cultural, as três irmãs realizaram turnês pelo Brasil e tocaram com grandes nomes da música, a exemplo do baiano Gilberto Gil, e ainda participaram da novela global ‘América’ (2005), na qual havia um núcleo com personagens deficientes visuais. Em um dos capítulos da trama, o trio paraibano pode mostrar suas canções.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 26 de agosto de 2022.