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‘Hits’, política e surpresas
por André Cananéa*
Poucos shows foram tão unânimes quanto Portas, que Marisa Monte apresentou quinta-feira passada, aqui em João Pessoa. Repertório recheado com hits de todas as fases da cantora, uma fantástica cenografia, apoiada em projeções em uma caixa cênica, um jogo de luz deslumbrante e um timaço de músicos encantaram um Teatro A Pedra do Reino lotado! E mais: teve convidado especial e uma justa homenagem a um artista paraibano pouco lembrado em sua terra.
O conceito de Portas, disse Marisa Monte ao Jornal A União, em matéria publicada no dia do show, remete ao período de isolamento provocado pela pandemia da Covid-19. Mas agora, em abril de 2022, com o arrefecimento da doença, a ideia ganha as mais variadas leituras. A cenografia digital, por exemplo, acompanhada do repertório do disco homônimo (das 17 faixas do álbum lançado em julho de 2021, ela cantou 11), abre diversas “portas da percepção”, para lembrar o famoso poema do bardo inglês William Blake.
Uma delas é a política, tema palpitante neste ano de eleição. Um sonoro “Fora Bolsonaro” gritado no meio da plateia foi respondido pela cantora com humor: “Deixa ele lá fora, gente”. A tréplica incluiu um “Olê-olê-olá… Lula-lá… Lula-lá”. A própria letra da canção que dá nome ao disco abre essa brecha: “Uma porta certa / Uma porta só / Tentam decidir / Qual é a melhor”.
Marisa aproveitou para dar um recado: “Queria lembrar que a gente não vai escolher só presidente. Dos três poderes, a gente vai escolher dois deles, o Executivo e o Legislativo, e é muito importante que a gente preste atenção no Congresso. A gente precisa melhorar a qualidade dos nossos representantes. Boa Sorte Brasil!”.
Foram mais de duas horas de show e 33 números, incluindo nada menos que cinco canções no bis, entre elas uma releitura para ‘Comida’, dos Titãs, que ela gravou em seu disco de estreia, MM (1989), e uma belíssima versão para ‘A lua e eu’, do paraibano Cassiano, morto em 7 de maio do ano passado, aos 77 anos de idade, completamente recluso. “Vamos fazer esse número que a gente cantarolou na passagem de som, hoje, desse cantor de Campina Grande que foi uma grande influência para mim”, declarou Marisa.
E eu sou capaz de apostar que a “cover”, que ela só apresentou em João Pessoa, surgiu após a provocação que o repórter Joel Cavalcanti, de A União, fez ao entrevistá-la, na semana passada. Ao lembrar que ela gravou com o campinense ‘Cedo ou tarde’ (presente no álbum homônimo de 1991), Marisa declarou que Cassiano fez parte da formação dela: “Reconheço, no meu próprio canto, o forte traço soul brasileiro que identifico nele. Conheço os seus álbuns de cor”.
Ela foi generosa com o público que saiu de casa para ouvir seus sucessos. Até ‘Bem que se quis’, do primeiro disco, estava lá, à capela, no encerramento do show. ‘Beija eu’, ‘Ainda lembro’, ‘Preciso me encontrar’, ‘Ainda bem’, ‘Na estrada’, ‘O que me importa’, ‘Magamalabares’, ‘Infinito particular’ e ‘Vilarejo’ estavam lá também, enfileiradas com ‘Velha infância’ e ‘Já sei namorar’ (ambas dos Tribalistas).
Outra surpresa que parece ter sido exclusiva do show pessoense foi a participação do sanfoneiro Waldonys, chamado ao palco para tocar ‘Segue o Seco’ com ela (que incluiu luxuosa introdução de ‘Tenho sede’, de Dominguinhos em parceria com Anastácia). Ele voltou no bis para coroar a versão de ‘A lua e eu’.
A sonoridade do show foi do rock ao funk/soul safra anos 1970, passando pelo samba raiz, afinal Marisa Monte sempre fez questão de declarar sua paixão pela Portela (em 2000, ela produziu o ótimo ‘Tudo Azul’ para a Velha Guarda). Tudo executado com esmero por um time de notáveis, escalado com a dedicação de um técnico em véspera de Copa do Mundo, mesclando veteranos, promessas da nova geração e herdeiros do talento de nomes sacralizados da MPB.
Um a um, ela foi apresentando esse who is who da MPB ao público, a partir do tarimbado baixista Dadi, ex-Novos Baianos e fundador do grupo A Cor do Som. Na sequência veio o trombonista (e arranjador) Antônio Neves, que a cantora anunciou como revelação da cena musical carioca. O terceiro foi o sobrinho, parceiro (ele é coautor de ‘Calma’ e ‘Déjà-vu’, do novo disco dela), filho de Carlinhos Brown e neto de Chico Buarque, Chico Brown, tecladista e guitarrista de apenas 23 anos.
O grupo ainda teve o guitarrista Davi Moraes, filho de Moraes Moreira, o baterista Pupilo (Nação Zumbi), o sambista Pretinho da Serrinha na percussão, e ainda Eduardo Santanna e Lessa, ambos integrando o abrasador naipe de metais.
Todo esse conjunto para reluzir o brilho da grande estrela da noite, Marisa Monte, que às vésperas de completar 55 anos, vive fase divina artisticamente, cantando com maestria e domínio absoluto, credenciais que a tornam uma das maiores cantoras do Brasil. Que ela volte logo à João Pessoa para mais espetáculos desse nível.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 03 de maio de 2022