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Gilberto Gil é maior

por publicado: 30/11/2022 00h00 última modificação: 30/11/2022 10h40
Foto: Karyme França/Divulgação Um dos grandes nomes da MPB, Gil foi xingado em estádio de futebol por torcedor

Um dos grandes nomes da MPB, Gil foi xingado em estádio de futebol por torcedor

por André Cananéa*

Em qualquer parte do mundo, o nome de Gilberto Gil é facilmente reconhecido. Pelo seu talento, pela defesa da cultura brasileira, pela mistura inovadora de gêneros na música, pelas canções que embalaram a vida de tanta gente. Gil é um patrimônio brasileiro. Mais: é um orgulho nacional.

O artista baiano foi xingado por um torcedor brasileiro quando entrava em um estádio no Qatar para assistir ao jogo do Brasil contra a Sérvia na quinta-feira passada (24). O torcedor, por certo, é integrante do chamado bolsonarismo, denominação da extrema direita brasileira seguidora do presidente Jair Bolsonaro com fervor doentio.

O leitor pode até discordar da palavra “doentio”, mas vejamos: Gilberto Gil, um artista de alcance internacional, um cidadão octogenário. Não provocou ninguém, estava devidamente acompanhada da esposa, Flora Gil, para assistir a um jogo, dentro de uma Copa do Mundo – que supostamente prega a unidade entre os povos, a fraternidade e a comunhão internacional –, dentro daquela vibe baiana-zen que só Gil tem.

Portanto, ouvir palavras de baixo calão a seu respeito, e inverdades, de forma ostensiva e virulenta, tudo devidamente gravado por supostos companheiros do agressor, que acharam pouco e ainda trataram de espalhar o xingamento pela infindável rede social, é o quê, se não doentio? Afinal, qual foi o crime que transformou Gil em Geni para levar pedrada? Foi ministro de Lula há décadas? Tem uma filha na equipe da transição do governo eleito? E isso é algo que faça qualquer cidadão merecer ser ostensivamente achincalhado publicamente?

Vamos pensar um pouco: qual foi o momento em que Gil veio à público denegrir a imagem de alguém, tecer teorias conspiratórias malucas, atacar com a mesma virulência quem quer que seja ou manifestar qualquer ato em desrespeito ao senso comum? Não houve.

Leio no portal do jornal O Globo que o torcedor mais evidente desse episódio, o que veste uma camisa com os dizeres “Papito Rani” se chama Ranier Felipe dos Santos Lemache e tem 43 anos. Segundo a publicação, ele admitiu que integrava o grupo que hostilizou Gil, mas nega ter xingado o artista. E em nota enviado ao jornal, escreveu: “Gostaria de me solidarizar com o senhor Gilberto Gil e sua família em virtude da ofensa que a ele fora proferida, uma vez que eu também não gostaria de ouvi-la”.

Atacar e recuar têm sido uma máxima do bolsonarismo. Nós vimos isso ao longo de quatro anos. Mas o ataque é maior que o arrependimento, sobretudo na velocidade da internet. Até o agressor emitir uma nota de desculpas, o estrago havia sido feito. Tão grande que levou o próprio Gilberto Gil a se pronunciar e, claro, agradecer à solidariedade irrestrita dos que estão fora do pequeno círculo bolsonarista. Afinal, Gil é maior que isso.

Acontece que, como citou Gil na manhã de domingo, o “terceiro turno”, além das notícias falsas que foram a combustão da campanha do presidente derrotado nas urnas, em outubro, tem atuado em uma frente ainda mais ignóbil que achar que a terra é plana: atacar os pilares artísticos que tem orgulhado o Brasil há décadas e que passam ao largo do cerco bolsonarista.

Ganhou repercussão, aqui em João Pessoa, o comentário feito por uma empresária em uma postagem da InCena Produções, quando da morte de Gal Costa, no começo deste mês. “Já vai tarde petista”, escreveu a empresária, cujo nome sequer merece ser citado, debochando do súbito falecimento da cantora, fato que comoveu o Brasil.

Surreal mesmo nem é a opinião dos simpatizantes de um Brasil ignorante, bruto e incivilizado, mas da juíza Monica Ribeiro Teixeira, que indeferiu uma ação de Chico Buarque contra Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, com o seguinte argumento: falta de comprovação de autoria da música ‘Roda Viva’.

Seria ridículo, se não fosse trágico! Claro que a juíza Monica Ribeiro Teixeira não é ignorante (dizem que ela se baseou em notícia falsa, o que é lastimável para alguém nesse cargo). Creio no sistema jurídico e acredito piamente que quem chega à magistratura, chega por notável capacidade intelectual, argumentativa e com uma boa noção de história do Brasil. Então se não peca por ignorância, no mínimo é simpática ao bolsonarismo para tecer uma justificativa chinfrim dessas. E o jurídico de Chico, claro, já avisou que vai recorrer.

Depois de derrotado nas urnas, o bolsonarismo procura se manter vivo criando factóides e buscando meios de “aparecer” através de redes sociais, fermentando discórdias em grupos de WhatsApp, Facebook etc., através de ecos criados tanto por gente de má-fé, quanto dos inocentes úteis, ainda lobotomizados em função da eleição.

Sinceramente, isso me deixa mais triste que revoltado. Triste, pois o Brasil já foi mais sadio. Nós já torcemos juntos pelo mesmo time, já ouvimos as mesmas músicas e achincalhar publicamente, com registro audiovisual, um gigante da nossa pátria, da parte de um militante da extrema direita, em prol de um projeto político derrotado, ultrapassa a ignorância. É uma vergonha alheia em nível extremo para quem acredita em um Brasil melhor.

A Gilberto Gil e Flora, toda minha solidariedade.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 29 de novembro de 2022.

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